O planejamento de uma viagem envolve inúmeros fatores. Para quem viaja de avião, a compra de passagem aérea requer alguns cuidados e devemos prestar bastante atenção para não cometer enganos, como, por exemplo, comprar a passagem para a data errada. Mas é possível que você tome todas as cautelas e mesmo assim se veja obrigado a cancelar aquela viagem tão sonhada. Se, por acaso, isso acontecer com você, fique muito atento para a multa cobrada pela companhia aérea!
Quando o consumidor decide cancelar a compra, a companhia aérea tem o direito de cobrar multa. Ocorre que, frequentemente, a multa cobrada do consumidor pelo cancelamento da compra da passagem aérea varia entre 80 e 90%. Será que é legal (conforme a lei) e justo cobrar a título de multa praticamente o valor que o consumidor pagou pelos bilhetes? E se isso acontecer com você?
Infelizmente aconteceu comigo. Uma vez comprei pelo site Decolar quatro passagens aéreas, sendo duas da companhia aérea American Airlines, de Miami para Nova York, e duas da companhia aérea JetBlue Airways, de Nova York para Orlando. Precisei cancelar somente o primeiro trecho, que seria de Miami para Nova York. Fui até a loja da American Airlines e solicitei o cancelamento apenas desse trecho, operado pela própria American Airlines, pois ainda tinha interesse no segundo (Nova York – Orlando), operado pela JetBlue.
Na ocasião, fui informada de que não seria possível cancelar apenas o primeiro trecho, seria necessário cancelar os dois trechos! E avisaram que, caso eu não cancelasse o primeiro trecho e não comparecesse, haveria no show, fazendo com que o segundo trecho fosse automaticamente cancelado. Sem alternativa, me vi obrigada a cancelar todas as passagens e solicitei o reembolso, com antecedência de quatro meses da data da viagem.
Sabe qual foi o percentual da multa aplicada pela companhia aérea? Aproximadamente 85%! Ajuizei minha ação e consegui a redução dessa multa abusiva.Então, nos casos de cancelamento de passagem aérea realizado pelo consumidor, a companhia aérea tem a obrigação de efetuar o reembolso, mas tem o direito de cobrar multa. O problema é que o percentual da multa é sempre extremamente elevado. Se isso acontecer com você, caso não concorde com o valor da multa, é possível tentar uma negociação por meio do Procon ou ajuizar uma ação.
Se decidir ingressar com uma ação judicial, é indicado procurar o Juizado Especial Cível da sua cidade, sendo que nos casos de reclamações de até 20 salários mínimos não precisa de advogado. Acima desse valor é necessário contratar um advogado ou, em caso de falta de recursos para tanto, procurar a Defensoria Pública.
E quais seriam os fundamentos jurídicos que caracterizam a cobrança da multa como abusiva? Em primeiro lugar, precisamos saber que casos como esse devem ser solucionados sob o prisma do sistema jurídico autônomo instituído pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC), que regulamenta o direito fundamental de proteção do consumidor (artigo 5º, inciso XXXII, da Constituição Federal).
O artigo 2°, do CDC, considera como consumidor toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final. Por sua vez, o art. 3º, do CDC, define fornecedor como toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços. Dessa forma, os passageiros (consumidores) e as companhias aéreas (fornecedoras) enquadram-se nos conceitos descritos, cabendo, assim, a proteção dos direitos dos passageiros, previstos no artigo 6º do Código de Defesa do Consumidor, dentre eles os seguintes:
Art. 6º. São direitos básicos do consumidor:
(…) VI – a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos;
VII – o acesso aos órgãos judiciários e administrativos com vistas à prevenção ou reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos ou difusos, assegurada a proteção Jurídica, administrativa e técnica aos necessitados; (…)No meu caso, a companhia aérea se recusou a diminuir o valor da multa, por isso ajuizei uma ação e a retenção de 85% do valor pago foi considerada abusiva, principalmente porque o contrato foi cancelado com a antecedência de quatro meses, possibilitando que os assentos pudessem ser disponibilizados para venda a eventuais interessados. Dessa forma, a cláusula que estipulou esse percentual de multa foi considerada nula por estabelecer uma obrigação abusiva para o consumidor, nos termos previstos no artigo 51, inciso V, do CDC:
Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:
(…) IV – estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade; (…)
Também é possível argumentar que a retenção de 85% do preço pago viola o Código Civil, que permite a cobrança de multa por rescisão de até 5% do valor pago. Confira o disposto no artigo 740, que trata do contrato de transporte:
Art. 740 – O passageiro tem direito a rescindir o contrato de transporte antes de iniciada a viagem, sendo-lhe devida a restituição do valor da passagem, desde que feita a comunicação ao transportador em tempo de ser renegociada.
(…) § 3º – Nas hipóteses previstas neste artigo, o transportador terá direito de reter até cinco por cento da importância a ser restituída ao passageiro, a título de multa compensatória.
Além disso, o site Decolar não informou que, ao efetuar a compra de dois trechos conjuntamente, não seria possível cancelar apenas um deles. Essa conduta viola o direito do consumidor à informação, que impõe ao fornecedor a obrigação de informar de modo claro e correto o consumidor sobre as qualidades do produto ou serviço. Assim, a conduta do fornecedor que omite informações ou informa mal viola o princípio da transparência, previsto como um dos objetivos da Política Nacional de Relações de Consumo, motivo pelo qual deve ser considerada ilícita.
Importante acrescentar que se não é possível cancelar apenas um trecho há venda casada, prática abusiva vedada pelo Código de Defesa do Consumidor. Portanto, as passagens deveriam ser vendidas separadamente.
Sobre o assunto, o seguinte julgado do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios:
JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS. DIREITO CIVIL E DIREITO DO CONSUMIDOR. EMPRESA AÉREA. PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. CANCELAMENTO DE PASSAGEM REALIZADA PELO CONSUMIDOR. MULTA APLICÁVEL NO VALOR DE 5% DO MONTANTE A SER RESTITUÍDO. PEDIDO MENOR. JULGAMENTO ULTRA PETITA. EXCESSO DA CONDENAÇÃO DECOTADO.
- Nos termos do artigo 740 do Código Cívil, o passageiro tem direito a rescindir o contrato de transporte antes de iniciada a viagem, sendo-lhe devida a restituição do valor da passagem, desde que feita a comunicação ao transportador em tempo de ser renegociada.
- Logo, rescindido o contrato de transporte antes de iniciada a viagem, consoante o disposto no § 3º do artigo 740 do Código Civil, o transportador terá direito de reter, tão somente, até cinco por cento da importância a ser restituída ao passageiro, a título de multa compensatória e não a integralidade da importância paga pelo consumidor, motivo pelo qual merece prestigio a sentença do magistrado sentenciante que determinou a restituição do valor da passagem.
- Conquanto o Código Civil preveja que o transportador terá direito de reter até cinco por cento da importância a ser restituída ao passageiro, a título de multa compensatória, o passageiro ao deferir à companhia aérea, por meio de postulação judicial, o desconto de 10% do valor pago pela passagem a título de multa compensatória está a dispor de parte de seu direito, haja vista que o direito de ressarcimento pleiteado trata-se de direito patrimonial disponível, motivo pelo qual extravasa os limites da postulação inicial a sentença que condena o réu além do que lhe foi demandado.
- “O reconhecimento do julgamento ultra petita não implica a anulação da sentença; seu efeito é o de eliminar o excesso da condenação” (REsp nº 84.847/SP, Relator Ministro Ari Pargendler).
- Recurso conhecido e parcialmente provido para acolher a preliminar de julgamento ultra petita e decotar o excesso da condenação.(Acórdão n.831091, 20131110046508ACJ, Relator: FRANCISCO ANTONIO ALVES DE OLIVEIRA, 3ª Turma Recursal dos Juizados Especiais do Distrito Federal, Data de Julgamento: 04/11/2014, Publicado no DJE: 11/11/2014. Pág.: 342)
Além dos danos materiais, o consumidor pode pedir a reparação pelos danos morais sofridos, a depender do caso.
Importante mencionar que a decisão do juiz levará em consideração o que aconteceu no caso concreto e avaliará todos os detalhes. Além disso, há entendimento (minoritário) no sentido de que se a passagem aérea for promocional não haveria que se falar em abusividade da multa.
Ajuizar uma ação judicial demanda tempo, paciência e dinheiro, e nem sempre teremos uma solução a nosso favor. Portanto, devemos tomar todas as medidas para evitar o cancelamento da compra de passagens aérea, tais como, ler a política de cancelamento da empresa e evitar compras por impulso. Caso ainda assim aconteça algum imprevisto e seja necessário realizar o cancelamento das passagens aéreas, se houver aplicação de multa abusiva pela companhia aérea, o consumidor deve buscar os seus direitos.
Bianca Cobucci é Defensora Pública, Mestre em Políticas Públicas e coordenadora do Projeto Falando Direito; Autora do blog Teoria da Viagem. Escreve sobre os direitos do consumidor relacionados à viagem e turismo, bem como sobre os países e lugares que já que visitou.